Superflora 2020/2021

Entre Dezembro de 2020 e Abril de 2021 estive imerso na floresta que circunda a região metropolitana do Recife. Esta área de floresta é o remanescente da Mata Atlântica que outrora abundava por toda a região. Superflora fala dos “encontros” ao caminhar dentro da mata, destes nichos que “aparecem” e “desaparecem” conforme a luz, quase teatral, que penetra o topo das árvores. São os objectos que se revelam a mim, são eles que concedem permissão para se deixarem fotografar.

Superflora #01 | 120x150cm | 2021
Superflora #02 | 120x150cm | 2021
Superflora #03 | 150x120cm | 2021
Superflora #04 | 150x200cm | 2021
Superflora #05 | 80x100cm | 2021
Superflora #06 | 150x200cm | 2021
Superflora #07 | 120x150cm | 2021
Superflora #08 | 120x150cm | 2021
Superflora #09 | 120x150cm | 2021
Superflora #10 | 150x200cm | 2021
PT

A língua que não podemos falar, mas ainda assim, chega até nós

Sobre Superflora de Márcio Vilela

Há mil maneiras de dizer não à mudança, de disputar o coletivo a favor de uma missão privada para transcender tudo o que é partilhado. Um dos métodos de negação é a busca da desconexão dos elementos, do repúdio da terra, do ar, do fogo, da água e do éter. A afirmação do eu humano singular como o auge da evolução emerge de uma longa tradição ocidental de ilusão. Como pode existir qualquer pessoa sem as referências massivas interligadas de outros seres vivos? A humanidade está confinada à linguagem e aos sistemas de tradução. Uma das deficiências da linguagem é o perpétuo regresso ao “anthro”. Os povos indígenas de todo o planeta, têm em comum cosmologias que dão “voz” à natureza. Uma verdadeira voz. Isto não é algo a ser assumido ou menosprezado. Se nós, enquanto humanos, falamos um conjunto muito limitado de línguas, imaginemos o que isso significa para a nossa capacidade de compreender o que está realmente a acontecer à nossa volta.

Nas lúcidas palavras da recentemente falecida Joan Didion: “contamos a nós próprios, histórias para podermos viver… Interpretamos o que vemos, selecionamos a mais viável das múltiplas escolhas. Vivemos inteiramente, especialmente se formos escritores, pela imposição de uma linha narrativa sobre imagens díspares, pelas “ideias” com as quais aprendemos a paralisar a fantasmagoria em mutação que é a nossa experiência real”. Estas narrativas a que Didion se refere, são a própria substância do que permite à humanidade prosseguir uma agenda que subverte, oprime, e escraviza os mundos da natureza. São narrativas de progresso, do fosso crescente entre o momento presente e o esquema capitalista. São também narrativas que glorificam a natureza a tal ponto que esta se torna inacessível.

E como é que a arte e o fazer artístico contribuem para esta equação que afirma a primazia do humano e da experiência humana? Em muitos aspetos, a arte é o grande mediador, o fluido no qual o eu se dissolve enquanto permanece detetável. Tudo isto para dizer que, quando um artista está disposto a desaparecer, algo muito especial acontece. Eis alguns provérbios e afirmações que atestam o criativo e o omnipresente na natureza, que implicam o desaparecimento iluminado do singular “autor”.

Lakota : O coração do homem longe da natureza torna-se duro. (Standing Bear)

Navajo: As montanhas, eu torno-me parte delas… As brumas da manhã, as nuvens, as águas de encontro, eu torno-me parte delas. (provérbio)

Mazatec: Cure-se a si próprio, com as folhas de hortelã e de menta, com o neem e o eucalipto. Adoce-se com lavanda, alecrim e camomila. (Maria Sabina)

Krenak: “Filho, silêncio”. A Terra está a dizer isto à humanidade. E ela é tão maravilhosa que… ela não está a dar uma ordem. Ela está simplesmente a pedir: “Silêncio”. Este é também o significado de recordação. (Ailton Krenak)

Maasai: A floresta tem ouvidos. (provérbio)

Márcio Vilela, com a sua prática imersiva que o trouxe profundamente em contacto com a selva no coração de Recife, acrescentaria a esta lista de adágios. Ele disse uma vez que enquanto caminhava de lugar em lugar neste ambiente, que a dada altura sentiu que lhe foi “ concedida permissão”, o que lhe abriu o espaço para começar a fotografar. As obras que vemos na Galeria Foco são prova deste convite para entrar numa relação íntima com o verde, com as texturas, com a luz, com as sombras, e com as vibrações que o rodeiam. Vilela partilha uma linhagem com Andy Goldsworthy e Robert Smithson, com Ansel Adams e Tina Modotti.

Estes são artistas que passaram tempo, religiosamente, no exterior. Vilela, com Superflora, transmite que
a fotografia não precisa de ser dividida em categorias que se desviem ou regressem ao “retrato” ou ao “documentário”. Esta dualidade tem definido a análise da fotografia durante muitos anos, e Vilela incuba

uma alternativa. Porquê? Os sujeitos das suas fotografias falaram. Ele pode não ter falado a sua língua na totalidade, mas ainda assim, chegou até ele. Superflora é uma afirmação de mudança e por isso é uma forma de meditação. Este projeto vai continuar, talvez não nas florestas do Brasil, mas noutras regiões selvagens que se abrem aos olhos e ao coração. Fora das tradições terrestres e fotográficas, Vilela habita outro cânone, o do curandeiro/a. Fora das tradições terrestres e fotográficas, Vilela habita outro cânone, o do curandeiro/ mulher. O veneno e o remédio vivem sempre um ao lado do outro, e Vilela está consciente deste princípio.

O seu trabalho, revela assim os maiores processos cíclicos de cura, nos quais participam, tanto os seres humanos, como os mundos da natureza.

– Josseline Black

EN

The language we cannot speak, which reaches us nonetheless

on Superflora from Márcio Vilela

There are a thousand ways of saying no to change, of disputing the collective in favour of a private mission to transcend anything shared. One of the methods of denial is the pursuit of disconnection from the elements, of the disavowal of earth, air, fire, water, and ether. The assertion of the singu- lar human self as the pinnacle of evolution emerges from a long occidental tradition of delusion. How can any person exist without the massive interconnected references of other living beings? Humanity is locked in language and systems of translation. One of the deficiencies of language is the perpetual return to the “anthro”. Indigenous peoples across the planet, have in common cos- mologies which give “voice” to nature. Real voice. This is not something to be assumed or overloo- ked. If we, as humans speak a very limited set of languages, imagine what that means for our abi- lity to comprehend what is actually happening around us.

In the lucid words of the late Joan Didion: “we tell ourselves stories in order to live…We interpret what we see, select the most workable of the multiple choices. We live entirely, especially if we are writers, by the imposition of a narrative line upon disparate images, by the “ideas” with which we have learned to freeze the shifting phantasmagoria which is our actual experience.” These narrati- ves to which Didion refers, are the very substance of what enables humanity to pursue an agenda which subverts, oppresses, and enslaves the worlds of nature. They are narratives of progress, of the widening gap between the present moment and the capitalist schema. They are also narratives which glorify nature to such an extent that it remains inaccessible.

And how does art and art making factor into this equation which asserts the primacy of the human and the human experience? In many ways, art is the great mediator, the fluid into which the self dissolves while remaining traceable. All this to say, when an artist is willing to disappear something very special happens. Here are some proverbs and statements which affirm the creative and the omnipresent in nature which implicate the illuminated disappearance of the singular “author”.

Lakota : Man’s heart away from nature becomes hard. (Standing Bear)

Navajo: The mountains, I become a part of it… The morning mists, the clouds, the gathering waters, I become a part of it. (proverb)

Mazatec: Heal yourself, with the mint and mint leaves, with neem and eucalyptus. Sweeten yourself with lavender, rosemary, and chamomile. (Maria Sabina)

Krenak: “Son, be silent.” The Earth is saying this to humanity. And she is so wonderful that she is not giving an order. She is simply asking: “Silence”. This is also the meaning of recollection. (Ailton Krenak)

Maasai: The forest has ears. (proverb)

Márcio Vilela, with his immersive practice which brought him deeply in contact with the jungle in the heart of Recife, would add to this list of adages. He once said that while walking from places to place in this environment, that at one moment he felt he was “given permission”, which opened the space for him to begin photographing. The works that we see in Galeria Foco are evidence of this invitation to enter into an intimate relationship with the green, with the textures, with the light, with the shadows, and with the vibrations around him. Vilela shares a lineage with Andy Goldsworthy and Robert Smithson, with Ansel Adams and Tina Modotti. These are artists who spent time, religi- ously, outside. Vilela, with Superflora, transmits that photography need not be divided into catego- ries which deviate or return to “the portrait” or the “documentary”. This duality has defined the analysis of photography for many years, and Vilela incubates an alternative. Why? The subjects of his photographs have spoken. He may not have spoken their language entirely, but it reached him nonetheless. Superflora is an affirmation of change and thus is a form of meditation. This project will continue, perhaps not the in the forests of Brazil, but in other wildernesses which open them- selves to the eye and to the heart. Outside the traditions earth-works and photography, Vilela inha- bits another cannon, that of the medicine-man/woman. The poison and the remedy are always li- ving next to each other, and Vilela is aware of this principle. His work, thus reveals the larger cycli- cal processes of healing, in which, both humans and the worlds of nature, participate.

– Josseline Black